sobre nossa

mamadeira de piroca

Posfácio do livro Mães enlouquecem

Contudo, em nosso livro encontramos uma bruxa, Medeia, que não personifica apenas a mãe livre para decidir sobre o fim de sua própria prole, provocando a ira dos espectadores de um mundo que submeteu o útero ao interesse absoluto da multiplicação do capital: Medeia foi também para nós a personagem trágica e, como tal, não apenas vitimada por uma perseguição, mas também a senhora que fez seus os passos de Jasão – esse personagem explorador e mercantilista que não se deixa deter por valores morais ou filhos. Brecht retratou exemplarmente para nossos tempos esse outro lado materno na personagem principal de Mãe Coragem, mãe mercenária errante alimentando seus adorados filhos com o mercado dos cadáveres e espólios de guerra. Compõe-se assim um ventre que não é apenas máquina subjugada à multiplicação de força de trabalho, mas também agente reprodutor do mercado. O capital escraviza e também alicia o útero, buscando aí a geração do ser biológico, com sua força física de braços, e também uma alma que anime a lógica de seu funcionamento mercantil. Para tanto, não lhe basta criar a perseguição às bruxas: ele precisa também inventar a idolatria das madonas. E assim a maternidade, cindida em duas figuras, sobrevive no mundo ora como castigo físico semelhante ao trabalho, ora como engrenagem glorificada pela lógica do produto no mercado.
No episódio da mamadeira vemos mais uma vez essa lógica vicejando sobre o território materno. Substituindo o seio por um objeto fabricado que, ao mesmo tempo, mostra e esconde repulsa e cobiça, esse novo apetrecho fetichista espalhado pelas mídias encenou um materno – não restrito a uma classe social ou gênero – animado pelas incertezas próprias ao mercado e reclamando, enlouquecido e enlouquecedor, sua própria insatisfação. Mas se Mãe Coragem, percebendo que o mercado no qual alimenta seus filhos é o mesmo que os mata, como Medeia nos conta sobre o momento da descoberta da impossibilidade de uma mãe transformada em senhora das razões mercantis, já nas novas mamadeiras-pênis vemos ainda em ato a contradição daqueles que, escolhendo o produto ficcional da satisfação total garantida, nas prateleiras dos congelados aceitam entregar os filhos à carnificina. Em um mundo cujo desenvolvimento tecnológico produz um excedente de mão de obra, o uso do útero como reprodução de força de trabalho não é mais central, enquanto o uso desse como reprodutor da lógica do produto revela-se cada vez mais fundamental: mais do que escravas, nosso mundo precisa de senhoras. Na popularização de um produto que é tanto a mãe quanto seu objeto, a senhora mãe incluída no mercado, ambiguamente atraída e traída pelo novo produto, apenas redistribui em novas porcentagens os enlouquecedores males maternos.
Se a apologia do armamento revelou nas eleições uma masculinidade em crise, a nova mamadeira nos revela uma maternidade igualmente em crise – e quando aí o materno, atravessando sob a forma de um falo qualquer distinção clássica de classe social, racha ao meio nossa sociedade, vemos como justamente um aprofundamento da cisão entre boas e más mães – cultuadas ou apedrejadas – fomenta e instala essa nossa crise.
A dupla maternidade brasileira é um tema conhecido da antropologia, mas pouco explorado pela nossa reflexão sobre quem somos (cf. por exemplo Rita Laura Segato em “O Édipo brasileiro”, 2006). Crescemos como nação criados pela negra ama de leite, posteriormente higienizada em ama seca, e a mãe biológica e jurídica, senhora branca. Para que senhores e senhoras possam se liberar do trabalho de criação de seus filhos, as mulheres escravas/pobres, afastadas de seus lares e transformadas em serviçais domésticas, deixam de cuidar de seus próprios filhos. Instala-se assim uma dupla exclusão do exercício materno: umas por excesso de dinheiro, outras por falta do mesmo, mães não criam seus filhos. Nesse contexto, a regulamentação do trabalho doméstico empreendida nos governos petistas não age meramente sobre uma ordem trabalhista: ela revira o duplo seio no qual nasce e cresce o ser antropológico brasileiro – cuja história pregressa de conflitos narra vários episódios de desconfiança e traição que fazem jus agora à cena da nova santa mãe horrorizada com o leite saído da diabólica mamadeira. E no refluxo dos primeiros passos de reversão dessa matriz dupla de nosso ser brasileiro, nas últimas eleições essa louca invenção materna plástica fez par com o dedo apontado em forma de arma.
Em O povo brasileiro, de Darcy Ribeiro, encontramos alguns subsídios para pensarmos as particularidades do que poderia ser a dupla implantação do materno em nossas terras. Os europeus, que por aqui chegavam sem mulheres, serviram-se sexualmente e reprodutivamente do ventre índio e aí inocularam o embrião miscigenado do brasileiro. Contudo esse primeiro momento de gestação do brasileiro pode ser contado segundo duas linhas: uma primeira, da violação pela força das índias escravizadas ao lado de seus familiares também escravizados ou mortos; uma segunda, desenvolvida a partir do conceito de cunhadismo, que contaria sobre os ventres indígenas fecundados dentro do sistema da cultura ameríndia de trocas e de relações sociais e familiares entre diferentes povos. Em ambos os casos, vemos particularidades relevantes. Ao contrário de uma exploração violenta que obriga os escravizados à procriação entre si, para produzir mais mão de obra para o patrão daqui a mulher subjugada procriava um filho de seu algoz – e não de um igual a ela (de fato, índios e, posteriormente, negros, em cativeiro raramente se reproduziam entre si). O ser que nasce nessa nova geratriz étnica subjugada será um miscigenado, parte explorador, parte explorado. Pelo outro lado, a prática do “cunhadismo” permitiu que o ventre índio não fosse apenas reprodutor de mais mão de obra servil, mas também entrasse na ciranda do escambo entre produtos: as índias, seguindo sua tradição, casadas com os estrangeiros passavam a ser elo fundamental na troca de produtos entre o largo conjunto familiar, que recebia os produtos exóticos trazidos nos navios, e os europeus, que partiam com os produtos da terra entregues em troca pelos novos parentes. Uma particularidade da cultura local, calcada sobre os valores dos laços de troca, é apropriada pelos interesses mercantilistas através de um produto específico: o útero de uma mulher. Assim vemos como desde o momento inaugural de nossa vida nacional estão atuando as duas formas de ação da exploração do ventre: a subjugação e o aliciamento. Mas por traz de ambas subjaz um terceiro elemento comum: a miscigenação, ora involuntária, ora voluntária, sem que possamos aferir as medidas de violência e de confraternização que estiveram de fato presentes nesse primeiro momento. Sabemos apenas que a esperança de conciliação entre lógicas de comércio tão diferentes logo se desfaz; assim como o Nheengatu, nossa primeira língua materna inventada na mistura tupi-guarani e espalhada por todos os cantos, logo substituído pelo português.
Mas esses primeiros úteros históricos brasileiros deixam seus frutos. Os filhos da inseminação direta do capital europeu importado na reprodutora nacional, os nomeados mamelucos, ao mesmo tempo rejeitados pela linhagem paterna e rejeitando seu gentio materno, tornam-se especialistas em “mandar sobre a gente de que foram tirados”. E, na esteira do fracasso dessa conciliação amorosa entre diferentes culturas, suas mães índias logo acorreriam constritas ao confessionário e, convertidas em fiéis e fervorosas beatas, para a alegria da igreja jesuíta local, transformariam as máculas culposas de suas participações nas violações em peitos purificados na beatificação. Ao lado do carrasco, nasce a santa mãe, ambos em um processo de identificação que renega radicalmente uma parte constitutiva de seu ser miscigenado – afinal, que saia de mim essa pobre diaba! A origem miscigenada exige a instalação de um regime de exclusão identitária radical que impossibilitaria qualquer coabitação ou solidária empatia: um estado de guerra total entre eu e aquele que não pode mais ser qualquer parte de mim. Para D. Ribeiro “a mais terrível de nossas heranças é esta de levar sempre conosco a cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a explodir na brutalidade racista e classista” – e, completamos, justamente para podermos com essa brutalidade jogar para fora de nós mesmos esse outro vitimado com o qual estamos atados por nossas origens miscigenadas. Na nossa atual mamadeira-pênis um novo episódio de explosão se encena no útero, rasgando a nossa maternidade misturada para que a santa mãe não precise se reconhecer em sua alteridade de pobre, violada ou lascivamente seduzida. Nas figuras dessa dupla inicial de nossa brasilidade - do mameluco capataz, arma em mão, e da fervorosa beata, terço a mão - não reconhecemos justamente o macho e a fêmea que ganharam as últimas eleições, negando qualquer resquício de solidariedade para essa parte de si mesmos reapresentada no outro? Nas últimas eleições, entre as armas e as mamadeiras, repetimos nossas origens: por um lado, o desejo genocida de uma sociedade armada para matar mulheres e seus filhos; por outro, uma maternidade pródiga em entregar pelo mercado seu útero ao inimigo.
Hoje ou ontem uma mãe pobre só pode cuidar de seus filhos como heroína sobrevivendo fora da sociedade, marginalizada em “unidades matricêntricas”, como nomeia D. Ribeiro – o qual supõe que a reversão dessa situação e a constituição de uma estrutura familiar estável, com paternidade responsável, a partir da superação da marginalidade socioeconômica: assim aquela que era a ama na família do burguês, passaria a senhora em seu próprio lar. Mas o episódio da mamadeira revela as aporias da ascensão socioeconômica das classes marginais no caos das cidades no Brasil – essa terra de ninguém, abandonada à bandidagem de plantão e aos meios de comunicação de massa para os quais “bom é o que mais vende”, independentemente dos desarranjos morais e mentais que provoquem, e entregue ao socorro do pastor evangélico. Se no racismo “assimilacionista” o negro, ascendendo socialmente, torna-se branco, na maternidade “assimilacionista” a até então escravizada prontamente torna-se senhora. Vemos o próprio antropólogo cair nesse engodo ao descrever assim a novidade advinda dessa melhoria econômica: “Nessas novas condições, a mulher de cor, que sempre foi parceira desejada e até especialmente apreciada para relações eventuais, passará a competir com todas as outras para conformar relações estáveis e igualitárias”. A melhoria financeira leva a outrora tratada como puta ao lugar da senhora – sem que a senhora se torne por isso menos senhora e, em alguma parte, puta. Seguindo pelo veio da miscigenação originária, os lugares podem ser trocados – mas não podem mudar, para que algo da verdade sobre a mistura entre eles possa continuar ocultado, impedindo qualquer forma de solidariedade entre as duas maternidades – a nova senhora, identificada com nossa classe dominante, perpetuará a irresponsabilidade dessa perante o povo massa. A marca de nossa mistura originária nos levaria mais veementemente a um regime de exclusão de nossa alteridade, fazendo do que não seria encontro, mas certamente reencontro, um abominável a ser evitado a todo custo – e, impedida de nos alimentar com a novidade de sua mistura, de dentro de nós mesmos essa origem segue apenas nos envenenando e nos fazendo um país doente, eterno refém de uma lógica perversa gestada em um duplo ventre, ora subjugado pela violência do explorador, ora pela fascinação da mercadoria.
O mundo tal e qual hoje o conhecemos não cerca em um espaço fechado apenas a terra, mas também as identidades. A lei do mercado separa sujeito e objeto, cultura e natureza, permitindo a manipulação descompromissada do capital sobre um universo inanimado, do proprietário sobre a sua propriedade – e assim também impõe uma lógica de identidades privativas e cercadas, isoladas em unidades intercambiáveis nas quais a alteridade está ausente. É dentro dessa lógica identitária que nascem e vivem as entidades da bruxa/escrava castigada e da madona/senhora mimada, as quais, como vemos ocorrer no evento da estranha mamadeira, podem permissivamente trocar de lugar, mas, como água e óleo, sem se misturarem. E se, como propomos em Mães enlouquecem, a filiação exige justamente um espaço compartilhado entre diferentes e suportado por uma lógica não totalitária que reconhece em si a alteridade, compreendemos por que a instalação dessa dicotomia materna, operando aí o duplo fundamento da lógica do capital e do mercado, reconstruiria a maternidade sobre uma dupla impossibilidade.
Nossa miscigenação originária teria sido um momento de superação dessa dicotomia que se apresenta sob diferentes formas/figuras, mas que tem sempre como esteio uma visão maniqueísta do mundo, dividindo-o entre nós e eles, sobrepostos ao bem e o mal? Essa outra lógica poderia ser nosso legado indígena? Mas a imagem desse primeiro momento de nosso país não é apenas a projeção de nossa fantasia de um paraíso perdido? Certo é que uma miscigenação voluntária, de acordo com a cultura ameríndia, conviveu com a dura realidade da violação imposta pelo estrangeiro às jovens brutalmente escravizadas. Portanto, tão importante quanto resgatar em nós mesmos a voz das vítimas da violência é também resgatar a voz das vítimas do sonho, Iracemas, para que o sonho não seja mais combustível do romance, mas sim da revolução – para que essas vítimas infelizes não precisem esconder seus sonhos nas penitências do mercado e do confessionário, ávidas do antídoto de uma mamadeira que as afaste ainda mais de seus desejos renegadas, mas que por fim bem acordadas sonhem com seus ventres e colos a gestação de um mundo amorosamente compartilhado.
O colo não é a mera expansão de um espaço físico de reprodução de um corpo biológico, mas sim um território político. Evacuando esse lugar de submissão imposto durante séculos ao corpo da mulher, o deixamos livre para ser ocupado pela lógica privatista do mercado – e a mamadeira de piroca é a prova da atualidade dessa ocupação. Mas como reocupá-lo agora? Se uma cisão entre a puta e a santa mãe – que, não por acaso, reapareceu com tanta expressividade também no episódio Ele não da campanha eleitoral – é tática primordial de privatização desse primeiro território humano, seu compartilhamento entre ambas poderia, inversamente, reocupá-lo coletivamente segundo uma outra lógica, recomposta em suas próprias alteridades. Em Medeia acompanhamos a força do encontro entre a bruxa e a senhora - e vimos na imagem de Schiele da mãe que segura em seu colo dois filhos, um esfarrapado morto e outro glorioso vivo, refazer-se em um só corpo as duas figuras maternas mumificadas, compondo um novo ser feito do compromisso entre a pobre e a rica, a mortal e a imortal, a puta e a santa, segundo uma lógica já não totalitária e que não mais separa o mundo em entidades/identidades diabólicas ou divinas, más ou boas, mas acolhe em si o que lhe é outro já não mais como inimigo, mas sim parceiro. Admitindo que em nosso país por origem nossas identidades totais são falsas e só funcionam como defesa frente à alteridade que nos forma, aqui mais do que em qualquer outro lugar esse encontro revela-se então reencontro com a verdade mais primária da humanidade.
Ainda desconhecemos os próximos sangramentos desse nosso originário-social didelfo. Nas redes, ouço hoje os gritos dos que comemoram a morte cruel de um filho – e de tantos outros filhos! A arma que castiga e mata com seu aço na rua da periferia o corpo dos filhos de uns, asfixia com seu plástico no mercado a alma dos filhos dos outros, restando-nos apenas ao final a opção entre sermos mães de filhos mortos-vivos, ou de filhos vivos-mortos. Enquanto as Mães de Maio ocupam as ruas para lutar pelos filhos assassinados pelas armas de fogo, as mamadeiras-pênis, esses apetrechos letais de plástico, disseminam loucas e incautas outra sina mortal. Estamos a um passo da benfazeja transgressão dessa lógica nefasta que nos cindiu no ventre e a todos hoje enlouquece? Ou na borda de um aprofundamento das chagas duplicadas de sua barbárie?

Mães enlouquecem foi escrito durante o mal-estar dos anos que precederam o processo eleitoral de 2018 e a consequente implosão social que agora, 2019, escancara o esgarçamento de uma sociedade que em grande parte escolhe um projeto de violência e supressão das garantias de cidadania. Mas se fake news sobre uma mamadeira-pênis tiveram um papel fundamental nessas eleições, uma cena materna, que não pode ser descrita senão como enlouquecida, atuaria no cerne desse processo: a aparição desse objeto ficcional específico – e não de um outro qualquer – encena um delírio coletivo justamente no colo que deveria ser capaz de nos introduzir no mundo alimentando-nos com doses comedidas de realidade e ficção. Como, então, deixar de pensar na raiz materna de nosso mal-estar atual?
Silvia Federici, em seu livro Calibã e a Bruxa, sustenta que a transformação da maternidade é fundadora do mundo tal qual hoje o conhecemos: o incremento da força de trabalho (mais braços trabalhando), necessário à acumulação primária do capital, se realiza através de um controle da natalidade que desapropria a mulher do controle do seu próprio útero. A mulher iguala-se assim ao escravo, servindo com o trabalho de procriação de seu corpo ao enriquecimento de poucos – e a caça às bruxas, diz a autora, perseguindo aquelas que possuíam o saber para controlar a procriação, é uma política fundamental para a implantação desse novo modo de exploração imposto ao mundo através do corpo da mulher.